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Os portais da cidade

Atualizado: 4 de jun. de 2020

Washington Fajardo*

Aceitar que o caos vire paisagem é destruir os fundamentos da urbanidade, além de jogar no lixo o potencial do Rio. Que o turismo é economia fundamental e estratégica para o Rio de Janeiro já sabemos há muito tempo. Do que falamos pouco é sobre sua capacidade de fomentar respeito e conhecimento por meio do contato entre culturas. Portanto, ser uma cidade hospitaleira é dimensão mais ampla do que simplesmente ser um destino global. Logo, ser anfitrião não significa apenas oferecer amenidades sofisticadas, mas pôr em prioridade a capacidade de ser acolhedor com o habitante local e permitir que o visitante possa ler a cidade e fluir por ela em segurança. A segurança pública está esfacelada. Viver é uma loteria atualmente. Há esforço político em resolver falta de recursos para as escolas de samba, mas não vemos o mesmo empenho na necessária intervenção federal na defesa do cidadão. Como se a experiência do espetáculo do Sambódromo pudesse ser plena sem assegurar a vida da população, especialmente da periferia, onde se forja a matriz cultural do samba. Não há festa e turismo sem proteger a juventude negra e pobre. Não há atração sem assegurar que a vida de policiais, pobres e negros, esteja garantida. O carnaval é uma oferta amorosa, para todos, inventada pelos pobres e negros, tão generosa que abraça até os próprios políticos que ignoram o valor da segurança. Morressem as crianças de Brasília, haveria solução em questão de horas.

Portanto, não há festa de fato, e não se desenvolve o turismo a contento, enquanto não mudarmos isso. Essa é a transformação que ainda não ocorreu. Há escalas menores que poderiam ser tratadas mesmo assim. O Rio de Janeiro possui uma imagem urbana clara, concisa, historicamente estabelecida, que, mesmo abalada pela violência, resiste. E é rara, bela essa imagem, onde a paisagem natural e a humana criam para o visitante uma mistura mágica. Todas as pesquisas mostram o alto índice de interesse em retornar, apesar dos problemas.

Não se pode, contudo, descuidar do ordenamento do espaço público. E especialmente não se deve abandonar os portais da cidade. Os aeroportos Galeão e Santos Dumont, a rodoviária Novo Rio, a estação de barcas, a Central do Brasil e os terminais de ônibus intermunicipais são portas de entrada da cidade. E, infelizmente, é péssima e consolidada a percepção destes espaços. Pegar um táxi no movimentado Congonhas, em São Paulo, é muito mais simples e organizado do que o caos que se enfrenta no Rio, onde se é achincalhado antes mesmo de sair do desembarque, cheio de quiosques de frotas “corporativas” que oferecem aos visitantes segurança, assim como um mafioso oferece garantias para seus clientes. Nem a nova oferta de BRT, com conexão com o metrô, no Galeão, ou a conexão do VLT com o Santos Dumont conseguem oferecer uma experiência positiva para o usuário, pois não há design de serviço que o priorize. As sinalizações nos aeroportos destacam pouco esses modais, há tantos letreiros de fast food, tantas placas que é impossível ler o ambiente arquitetônico.

Quando chegamos num lugar novo, desconhecido, nosso nível de adrenalina sobe, e entramos em estado de vigília em que todo o corpo fica mais atento, e também mais estressado, por isso ter espaços serenos e legíveis, mesmo que com alta densidade de uso, nos tranquiliza para tomar decisões e ter um bom registro de memória. Ser abordado, ser tocado, a todo momento, em outra língua, é equivalente a entrar num trem-fantasma. Os novos modais, infraestruturas excelentes, são bizantinos para os sistemas de compra de cartão de transporte. Ter o nome “Rio” no cartão Riocard é um prejuízo para a imagem da cidade. São sistemas burros, não projetados para visitantes. Dane-se se são operadores diferentes, ônibus, VLT e metrô! Se tais contratos de concessão tivessem um índice de avaliação do usuário não durariam um ano. Ou seja, há real desejo de fazer o dever de casa e ordenar coisas simples ou continuaremos usando a desculpa da insegurança para não cuidar de nada? A rodoviária e a Central do Brasil, e seus terminais de ônibus próximos, são portas do inferno de Dante. Aceitar que o caos vire paisagem é destruir os fundamentos da urbanidade, além de jogar no lixo o potencial do Rio como um lugar hospitaleiro.


O samba surgiu dos fluxos na cidade, da Pedra do Sal conversando com a Praça Onze, falando com Oswaldo Cruz. As estações de trem eram mais respeitadas como espaço público e de encontro. Chegar ao Rio já foi uma experiência maravilhosa no passado e que resiste. Descuidar desses portais da cidade, da experiência do usuário, seja ele local ou visitante, é também uma violência, lenta e paulatina. Nunca há uma segunda oportunidade para causar uma boa primeira impressão.

*Arquiteto e Urbanista

Ex-presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade e do Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural

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