Isabella Perrotta e Lucia Santa Cruz *
Dois forasteiros chegam de moto à fictícia cidade de Bacurau. Sua presença naquele pequeno povoado, isolado no sertão brasileiro, causa estranheza aos moradores locais. Eles vão a uma venda beber alguma coisa e a atendente pergunta se vieram por causa do Museu. Também a notícia de um museu naquele lugar causa estranheza aos espectadores do filme. Não é a primeira menção ao Museu no filme. Talvez despercebido no contexto da narrativa, mas logo numa das primeiras tomadas do vilarejo, ele aparece no centro da única rua do local: um prédio pequeno, com fachada de pedras e um letreiro simples: Museu Histórico de Bacurau. Fazendo uma análise cena a cena vamos identificar que em muitos momentos o prédio do Museu compõe o quadro, silenciosamente, sem alarde, mas como uma presença constante e relevante. Outro morador insiste também com os forasteiros para que conheçam o museu, ressaltando que ele é “muito bonito”. E estranha a recusa. Para a população local, o museu é a principal atração do lugar. Simbolicamente a razão de ser do lugar. Se os visitantes não vieram por causa do museu, por que vieram então? Como espectadores somos levados a indagar por que motivo um lugar perdido no tempo e no espaço, que chega literalmente a sumir do mapa, teria um museu histórico. Isto nos parece bastante paradoxal e somente com o desenrolar da trama descobrimos a sua centralidade. Mas o que não sabemos é que o MHB é o retrato de tantos outros museus, pequenos, simples e entulhados, que existem no interior do Brasil. Thales Junqueira, diretor de arte do filme diz, inclusive, que se inspirou no Museu de Canudos. São espaços que preservam histórias, guardam memórias, constroem narrativas, cultuam heróis, mas não merecem registro no Ibram ou nos sites de turismo. Na segunda parte do filme, quando seu interior é descortinado, lá estão fotografias, utensílios do cotidiano, armas, roupas, cabeças de cangaceiros, recortes de jornais com notícias fictícias de embates entre cangaceiros e a força policial local (volantes). Assim, o MHB dá legitimidade ao povoado. Guarda e expõe objetos e imagens que contam sua história. Reforça a existência de um povo quando essa parece ameaçada. Se Kleber Mendonça Filho, diretor em parceria com Juliano Dornelles, explica Bacurau como um filme sobre a resistência, também o Museu Histórico de Bacurau pode ser visto como um símbolo de resistência daquela cidade e daquela gente. Não só Bacurau, o filme premiado, tem sido mote de muitos comentários, mas - considerando que vivemos tempos em que as armas ganham espaço no país e a cultura (e os museus) se entrincheram – também o Museu Histórico de Bacurau tem sido assunto de diversas crônicas e posts. A cena em que uma moradora manda lavar o chão do museu, mas manter as marcas de sangue na parede, tem sido relacionada com a frase cunhada pelo museólogo Mário Chagas – “há uma gota de sangue em cada museu”– parafraseando o escritor Mário de Andrade que afirmara que Há uma gota de sangue em cada poema. Quando Chagas escreveu sua frase, sua intenção era desvelar a dimensão especificamente humana que existe no museu, ao mesmo tempo em que indicava para a necessidade de aceitá-lo como arena, como espaço de conflito, como campo de tradição e contradição. Limpar o sangue, o dejeto, a sujeira da vida é sempre nosso primeiro impulso. Guardar o sangue com as armas que ajudaram a derramá-lo implica em reconhecer que também a memória é feita de disputas, daquilo que escolhemos celebrar e do que optamos por silenciar. Em tempos como os atuais, a dimensão política e negocial da memória nunca pareceu tão explícita. E, quem sabe, um dia, armas virem objetos de museus. *Pesquisadoras do laboratório LEMBRAR da ESPM Rio
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